Ao noticiar a decisão do Washington Post de adotar a tecnologia Unified ID 2.0, da empresa The Trade Desk, em dezembro, o Financial Times descreveu o movimento como “uma das mais observadas tentativas de encontrar um sucessor para os cookies de terceiros – os controvertidos rastreadores entre sites que a Apple baniu e que o Google eliminará gradualmente até 2022”. 

De fato, vale a pena observar o que o Post faz. O jornal celebra vitórias em um ano em que boa parte da indústria lamenta perdas. Fechou 2020 com quase 3 milhões de assinantes digitais, receita publicitária recorde e a promessa de contratar mais de 150 profissionais, consolidando em 2021 a maior Redação de sua história, com 1.010 funcionários.  Vai criar dois hubs de breaking news – em Londres e Seul – e abrir escritórios em Sydnei e Bogotá.

À luz do ecossistema de mídia cada vez mais sofisticado e transformado por tecnologia e mudança de hábitos de consumo sob o qual vivemos, atribuir tal sucesso unicamente à qualidade do jornalismo praticado pode parecer um pouco de romantismo dos velhos tempos das redações envoltas em fumaça de cigarro e tomadas pelo ruído frenético de máquinas de escrever.

Uma pista mais provável para o milagre do Post pode estar no que disse Jeff Bezos em 2013, quando comprou o jornal fundado em 1877, então amargando queda de 44% na receita em seis anos e de 7% na circulação no primeiro semestre. 

O empresário tranquilizou a equipe dizendo que não pretendia envolver-se no cotidiano pois estava feliz morando “na outra Washington” (referindo-se a Seatle) e “tinha um emprego do qual gostava muito”, referindo-se à Amazon. Mas sinalizou o que planejava: 

“A internet está transformando os negócios da mídia, encurtando o ciclo de notícias, corroendo fontes de receitas estáveis e permitindo novos tipos de concorrência. Não há um mapa, e traçar um caminho não será fácil. Teremos que inventar, o que significa que precisaremos experimentar”.

Foi inventando e experimentando que o Washignton Post chegou a um modelo de negócio acompanhado com lupa pela indústria. E ele não dorme sobre os louros. A promessa feita pelo empresário continua pautando os movimentos do jornal. A Unified ID 2.0 é mais um exemplo. 

Ela pode ser o caminho para uma nova era na propaganda digital – aquela que financia o bom jornalismo que hoje precisa muito mais do que idealistas que escrevem bem, prensas e máquinas de escrever – no momento em que os cookies de terceiros, que permitem rastrear os hábitos de navegação, caminham para a extinção. De quebra, vai mudar a forma como nos logamos a diversos sites, além de prometer resolver o problema da privacidade. 

Foto: Glen Castens Peters/Unsplash

Pelo sistema criado pela The Trade Desk, os internautas passarão a utilizar uma identidade única, vinculada ao número de celular ou endereço de e-mail, para fazer login em vários sites, permitindo o rastreamento de seus passos em dispositivos diversos.

Desta forma será possível acompanhar quem viu um anúncio e identificar os sites que geraram mais resultados para o anunciante. 

O Post ressaltou que os consumidores terão total controle, podendo cancelar o uso a qualquer momento. É um elemento importante quando países e regiões avançam com legislações para assegurar privacidade e direito de escolha do usuário, um dos grandes fantasmas a assombrar as plataformas digitais globais. Reino Unido e União Europeia anunciaram seus pacotes legislativos em dezembro. 

O jornal também oferecerá o Unified ID 2.0 para integração com mais de 100 sites que utilizam o Zeus Performance, uma das três ferramentas de monetização desenvolvidas internamente pelo Post que compõem o Zeus Technology Suite. Com isso, o Post influencia diretamente outros veículos e posiciona-se como referência para a indústria. 

A Trade Desk e seu Unified ID 2.0

Ao escolher a tecnologia da The Trade Desk, o Washington Post aliou-se a uma das queridinhas do mercado de tecnologia e da bolsa Nasdaq. Plataforma de compra de mídia em nuvem dirigida por um dos fundadores, Jeff Green, a empresa sediada na Califórnia anunciou receita recorde no terceiro trimestre de 2020 e figura nas recomendações de compra de vários analistas do mercado de ações.

Pouco modesta, apresenta-se como uma companhia “que está transformando a mídia em benefício da humanidade”. A proposta da The Trade Desk é “ajudar as empresas a oferecer uma experiência de propaganda mais inteligente e relevante para os consumidores, estabelecendo um novo padrão para alcance global, precisão e transparência”. 

A lista de parceiros nos quais os clientes podem adquirir publicidade por meio da empresa é extensa, incluindo desde veículos tradicionais como BBC e Wall Street Journal a plataformas novas como TikTok e Spotify. 

Sua Unified ID 2.0 é descrita como uma atualização e uma alternativa aos cookies de terceiros. Pode ser papo de vendedor, mas os sinais do mercado são promissores. Antes de o Washington Post anunciar a adesão ao sistema, a empresa conquistou outros apoios, como os das ad-techs Magnite and Index Exchange e da gigante de medição Nielsen.

A The Trade Desk garante que a tecnologia proporcionará uma estrutura de consentimento simplificada, com mais controle para os editores. Destaca a identificação criptografada como “uma grande atualização sobre a tecnologia de cookies atual, que incluirá um ID criptografado e com função hash com medidas de responsabilidade aprimoradas, bem como controles de auditoria de terceiros”. 

Em linha com as pressões de órgãos reguladores, acena com controles simples e transparentes, que permitirão aos consumidores gerenciarem sua adesão. E salienta o logon único para toda a internet aberta, de forma que os navegantes não precisem logar novamente a cada vez que entrarem em um site. Algo como um passaporte universal, dispensando visto de entrada em cada país visitado.

Para o mundo da propaganda digital, o sistema promete uma mudança e tanto. A The Trade Desk destaca que, ao contrário dos cookies, o Unified ID 2.0 opera em canais de publicidade, como explicou o CEO Jeff Green: 

“Os anunciantes serão capazes de entender o desempenho da campanha em streaming de TV, navegadores, dispositivos móveis, áudio, aplicativos de TV e dispositivos com uma única ID, criando um ambiente mais forte para precisão e medição. Isso é fundamental, pois os profissionais de marketing e editores querem entender o comportamento de seu público em todas as plataformas de uma forma simples”.

A Nielsen parece entusiasmada com a ideia, que considera capaz de aliar a eficiência para o mercado publicitário com transparência para o consumidor, segundo o CEO David Kenny:

“Os mundos da TV e digital estão colidindo. Para fornecer ao mercado uma medição de mídia cruzada que realmente conduza as transações, a indústria precisa alinhar-se em uma forma comum de compartilhar e proteger os dados. Na Nielsen, nossa abordagem para medição de mídia cruzada requer uma abordagem que priorize a privacidade do consumidor. Acreditamos que um modelo de código aberto promove inclusão e transparência, que são fatores críticos para obter a adoção da indústria”. 

Pronto, tudo resolvido. Os cookies já têm seu substituto.

Será mesmo? 

Em entrevista ao Financial Times, Jarrod Dicker, vice-presidente comercial e de inovação do Washington Post, admitiu que o cenário é incerto e que a empresa também considera outros sistemas de identidade, tendendo a utilizar mais de um. 

Os movimentos das plataformas globais mostram timings diferentes 

O desconforto com os cookies de terceiros vem de longe. A União Europeia aprovou em 2012 a lei que permite aos internautas autorizarem ou não o armazenamento de cookies. E as gigantes de tecnologia donas dos principais navegadores também fazem seus movimentos, o que pode ser atribuído às pressões mas também à necessidade de alinhamento às novas leis, mais rigorosas no que
tange à privacidade, que começam a entrar em vigor este ano. 

O problema é que as duas maiores parecem divergir quanto ao timing ideal para isso. A Apple saiu na frente, enquanto os planos do Google não denotam o mesmo senso de urgência, apontando para 2022. 

Em março do ano passado a primeira atualizou sua tecnologia antirrastreamento (ITP) no navegador Safari, que passou a bloquear cookies de terceiros como padrão. A função tinha sido lançada em 2017, mas não abrangia a totalidade dos cookies. Ainda assim, foi recebida com críticas pelo setor de marketing digital, que chegou a fazer uma carta aberta protestando contra o que qualificou de “abordagem unilateral e pesada” à privacidade dos usuários. 

Ficou por isso mesmo, porque a Apple seguiu em frente. Ao anunciar o bloqueio completo no blog da empresa, o engenheiro John Wilander salientou que a melhoria “eliminava de vez a impressão de que algum tipo de rastreamento entre sites é aceitável”. 

E tripudiou sobre a concorrência, dizendo que “o Safari estava novamente estabelecendo um padrão para a privacidade na web e que ele e a Apple esperavam que outras empresas seguissem”. O Mozilla Firefox também adotou o bloqueio completo. 

A iniciativa foi saudada pelo site de tecnologia The Verge como “marco significativo para a web, colocando o navegador da Apple oficialmente dois anos à frente do Chrome”. 

Ele estava certo, pois os projetos do Google ainda não saíram do papel, e geram controvérsias.  O órgão de controle de concorrência britânico (Competition and Markets Authority) anunciou em 4/1 a abertura de uma investigação para avaliar se a tecnologia Google Privacy Sandbox representa riscos para a competitividade e a privacidade dos usuários. 

O pacote de ferramentas destinado a solucionar a questão dos cookies de terceiros foi anunciado para entrar em vigor gradativamente até 2022, quando então eles seriam inteiramente eliminados. 

Trata-se de mais um revés para o Google. Em janeiro do ano passado, a empresa chegou a fazer mudanças no design que tornaram mais difícil diferenciar um anúncio de um link normal – apresentadas como “uma experiência nos novos logotipos ao lado dos links não pagos, embora sem alterar o logotipo do anúncio”

Na época, a  Associação Americana de Agências de Propaganda e a de Anunciantes protestaram em uma carta aberta, sustentando que a remoção dos cookies poderia “sufocar o oxigênio econômico da publicidade de que as empresas iniciantes e emergentes precisam para sobreviver”.

O Google acabou voltando atrás logo depois, diante de protestos de usuários e cobertura negativa da imprensa. 

O resultado da investigação da CMA britânica e da implantação da tecnologia Unified ID 2.0 determinarão o futuro dos cookies de terceiros, em uma série que promete ainda muitos capítulos. 


Luciana Gurgel, coordenadora editorial  do MediaTalks byJ&Cia, é jornalista brasileira radicada em Londres. Iniciou a carreira no jornal o Globo, seguindo depois para a comunicação corporativa. Em 1988 fundou a agência Publicom, junto com Aldo De Luca, que se tornou uma das maiores empresas do setor no Brasil e em 2016 foi adquirida pela WeberShandwick (IPG Group). Mudou-se para o Reino Unido e passou a colaborar com veículos brasileiros, atuando como correspondente do canal MyNews e colunista semanal do Jornalistas&Cia / Portal do Jornalistas, no qual assina uma coluna semanal sobre tendências no mundo do jornalismo e da comunicação. É membro da FPA (Foreign Press Association). 

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