A ideia de boicotes a mídias sociais, como o que foi realizado no Reino Unido no último fim de semana, não é nova. E a história tem mostrado que mudanças efetivas ocasionadas por eles são pouco ou nada significativas.

Não faz nem um ano que as principais marcas globais se engajaram no #stophateforprofit, retirando verbas do Facebook e do Google e fazendo as ações caírem. Na semana passada, o Google anunciou 64% de aumento na receita e 162% no lucro líquido no primeiro trimestre, resultado atribuído ao crescimento em propaganda, demonstrando que o movimento de 2020 não incomodou em nada. 

Dessa vez, no entanto, pode ser diferente. O boicote de três dias, entre 30/4 e 3/5, convocado pelas associações de futebol britânicas contra o racismo online, chegou à mais simbólica instituição do país: a família real. Na sexta-feira, o príncipe William, presidente da da FA (Footbal Association), anunciou que ele e a mulher Kate Middleton não postariam nada em suas redes durante três dias. 

Mais importante do que isso foi a notícia de que a nova regulamentação das mídias sociais no país, que está em tramitação, vai equiparar o racismo online a outros crimes – antisemitismo, estímulo ao suicídio e à automutilação. E fará parte do discurso anual da rainha Elizabeth II, que marca a abertura do ano parlamentar, em maio. 

É um ato de alto simbolismo que tem também efeitos práticos, pois a fala da monarca anuncia a agenda legislativa do ano. Sinal eloquente de que a causa saiu das fronteiras do esporte para tornar-se uma questão nacional. 

Racismo online: como o esporte conseguiu catalisar a insatisfação geral 

Reclamações contra racismo online vêm de longe, mas tomaram nos últimos dois meses uma dimensão inédita graças à iniciativa das principais associações de futebol do país, lideradas pela Premier League e pela FA (Footbal Association). O boicote das mídias sociais – Twitter, Facebook e Instagram – ganhou a adesão de ligas locais e internacionais de futebol, incluindo a Uefa e a Fifa; de diversos outros esportes, como tênis, rúgbi, críquete e ciclismo; de comentaristas esportivos; de patrocinadores; de veículos de imprensa – Sky News, Guardian Sports – e de atletas de outras modalidades.

Um dos mais notórios foi o campeão de automobilismo Lewis Hamilton, que vem se destacando no combate à discriminação racial e acabou atraindo outros astros da Fórmula 1 para o movimento. 

Diferentemente de outros protestos, porém, a iniciativa vai além da mera reclamação. O movimento tem uma pauta objetiva, cobrando das plataformas digitais globais a adoção de mecanismos que impeçam ataques racistas e, do Governo britânico, o rigor na lei que punirá severamente as empresas de mídias digitais que permitem discurso de ódio nas redes.

Mesmo antes do boicote envolvendo todos os clubes do país começar, resultados da pressão começaram a se fazer sentir. O Facebook anunciou uma nova ferramenta para filtrar automaticamente as solicitações de mensagens diretas do Instagram contendo palavras, frases e emojis ofensivos e recursos para bloqueio preventivo de novas contas criadas por abusadores. 

E o Governo revelou detalhes da nova lei que será formalmente anunciada pela rainha,. 

Em entrevista à BBC na manhã de sexta-feira (30/4), Edleen Jonh, diretora de diversidade da Premier League, disse não esperar que, quando o boicote acabe o problema do racismo online esteja resolvido. Mas acredita que a pressão vai fazer com que a engrenagem para acabar com ele gire mais rápido. 

Nas redes sociais, as hashtags #StopOnlineAbuse e #socialmediaboycott destacavam-se entre os trending topics. Todos os times de futebol engajados no boicote postaram em suas redes, com discursos duros condenando o racismo online.

A história do movimento contra o racismo online no futebol 

Há dois anos, vários jogadores de futebol britânicos participaram da campanha #Enough, um boicote de 24 horas nas redes sociais em protesto contra o abuso online. Mas não adiantou muito. 

Uma investigação da Professional Footballers’ Association, o sindicato dos jogadores, encontrou 56 postagens abusivas no Twitter em novembro de 2020. A PFA diz ter comunicado às plataformas, mas, segundo a BBC,  31 delas ainda estão visíveis, o que a organização descreveu como “absolutamente inaceitável”.

Foto: Entrevista à CNN

A onda mais recente contra o racismo online foi iniciada pelo astro do futebol francês Thierry Henry, que em março fechou todas as suas contas de mídias sociaispara demonstrar sua indignação com o que considera falta de energia das plataformas digitais para coibir os abusos. Em seguida foi a vez de três clubes britânicos, Swansea City, Rangers e Birminghan City, ficarem três dias sem postar nas redes.

Foi o estopim para o boicote que agora toma conta de todo o futebol e outras modalidades esportivas. A convocação foi assinada pela Premier League e pela FA (Football Association) e pelas demais associações de futebol do país, como as ligas femininas das duas entidades, a English Football League, a Professional Football’s Association, a Football Supporters’ Association e a League Managers Association.

No statement anunciando a paralisação, as associações reconhecem o valor da conectividade proporcionada pelas redes, que consideram vital para os esportes, mas demandam das plataformas o fim dos abusos: 

“Este boicote mostra que o futebol inglês está unido para enfatizar que as empresas de mídias sociais devem fazer mais para erradicar com o ódio online, ao mesmo tempo que destaca a importância de educar as pessoas nesta luta contínua contra a discriminação”.

“Na carta de fevereiro de 2021, o futebol inglês pediu às empresas de mídias sociais maior filtragem, bloqueio e remoção rápida das publicações ofensivas, um processo de verificação rigoroso e prevenção em relação a novos registros e assistência ativa para as agências governamentais que aplicam as leis para identificar e processar as origens desse conteúdo ilegal”.

O statement reconhece que foram feitos alguns progressos, mas reitera as demandas como “um esforço implacável para conter o fluxo de mensagens discriminatórias e garantir que existam consequências na vida real para quem pratica abusos online em todas as plataformas”. E explica o papel do futebol: 

“O boicote isolado do futebol não vai erradicar o flagelo do abuso discriminatório online, mas pelo menos vai demonstrar que o esporte está disposto a dar passos voluntários e proativos nessa luta contínua”.

O Governo britânico também está sendo alvo de cobranças. Em novembro de 2020 foi publicado o projeto de lei da nova regulamentação de plataformas digitais, chamada Online Harm Bill. A lei baseia-se no conceito de duty of care (dever de cuidar), conferindo ao Estado poderes para punir quem coloca a vida de vulneráveis em risco, com grande ênfase nas crianças e jovens. 

 A lei está em tramitação, mas os que lideram o boicote querem mais velocidade e que a lei não seja flexibilizada. 

“Pedimos ao Governo do Reino Unido a garantia de que a Lei de Segurança Online será uma legislação com força para tornar as empresas de mídias sociais mais responsáveis pelo que acontece nas suas plataformas”. 

Edleen John, diretora de Diversidade e Inclusão da FA, disse: 

“É simplesmente inaceitável que as pessoas no futebol inglês e na sociedade em geral continuem sujeitas a abusos discriminatórios online diariamente, sem consequências no mundo real para os perpetradores.

Isso precisa mudar rapidamente e continuamos a exortar as empresas de mídia social a agirem agora para resolver isso. Não vamos parar de falar sobre essa questão e continuaremos a trabalhar com o Governo para garantir que o Projeto de Lei de Segurança Online dê poderes regulatórios e de supervisão suficientes para o órgão regulador.

As empresas de mídia social precisam ser responsabilizadas se continuarem a não cumprir suas responsabilidades morais e sociais para lidar com esse problema endêmico.”

A convocação é assinada também pela ONG Kick it Out, de combate ao racismo no futebol. Sanjay Bhandari, presidente, condenou o ambiente das redes:

“A mídia social é agora, infelizmente, um ambiente de abuso tóxico. Este boicote significa nossa raiva coletiva pelos danos que isso causa às pessoas que jogam, assistem e trabalham em esportes. “

O jogador brasileiro Willian vem sendo destacado pela Premier League como um dos porta-vozes contra o racismo online, por ter sofrido vários ataques. 

Quem participa do boicote 

O movimento do futebol contagiou outros esportes, dentro e fora do Reino Unido, e patrocinadores, como Adidas, Nike, Budweiser e Barclays. Veja quem se engajou:

  • Futebol: clubes da Premier League, Liga Inglesa de Futebol, Superliga Feminina, Liga Escocesa de Futebol Profissional e Futebol Feminino Escocês; órgãos dirigentes, incluindo Football Association, Scottish FA, Football Association of Wales e Irish Football Association; Uefa, Fifa
  • Críquete: Conselho de Críquete da Inglaterra e País de Gales, times regionais femininos e a Associação Profissional de Críquete
  • Rúgbi: Rúgbi da Inglaterra, Rúgbi Escocês, Rúgbi Galês, Rúgbi da França, Rúgbi Premiership, clubes e a Associação de Jogadores de Rúgbi
  • Rúgbi internacional: Rugby Football League, Super League Europe, Rugby League World Cup 2021 e Rugby League Players Association
  • Outros esportes: British Cycling, British Horseracing, Grã-Bretanha e Inglaterra Hockey e Lawn Tennis Association
A posição das plataformas 

Embora não tenham feito qualquer comunicado conjunto, a posição das plataformas em relação às pressões por mais controle do racismo online tem sido semelhante. Condenam os abusos e destacam o que vem fazendo para combater o problema. 

O Twitter divulgou um comunicado afirmando que é “firme no nosso compromisso de garantir que as conversas sobre futebol na plataforma seja seguras para os adeptos, jogadores e todos os envolvidos”, e disse ter removido mais de 7.000 tweets relacionados ao futebol no Reino Unido que violavam suas regras.

Isso não tem sido suficiente para conter a onda que se espalhou para os demais esportes. Diante da pressão, o diretor do Facebook para a Europa, Steve Hatch, escreveu um artigo no jornal Daily Telegraph, em que descreve os esforços da empresa e destaca a nova ferramenta de filtro automático de mensagens diretas com conteúdo abusivo no Instagram. 

Mas ao mesmo tempo, sinalizou que não há intenção de atender voluntariamente a um dos principais pedidos de atletas e entidades: o fim do anonimato dos usuários de mídias sociais. 

A julgar pelo tamanho da pressão exercida pelo futebol e pelos demais esportes, que mobilizam multidões, e pela entrada da família real no circuito, será uma batalha longa entre as plataformas e os que demandam mudanças mais radicais do que as que foram implantadas até agora. 

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